Havia dias em que acordava com a camisa da seleção. Era a senha. A mãe e o filho precisavam correr para arrumar tudo, enquanto o avô tomava seu solitário café da manhã. Era preciso arrumar a sala, tirar os porta-retratos recentes, resgatar do sótão o velho vídeo-cassete (que ficava aparentemente desligado) e retirar da redoma meticulosamente escondida a famigerada fita VHS.
O avô não estava bem da cabeça. Passava dias, até meses sem dizer palavra. Quando resolvia abrir a boca era em uma ocasião temida pela sua filha e seu neto. Era quando acordava com a camisa da seleção.
A mãe e o filho já sabiam as consequências do não-cumprimento do sagrado ritual de adaptação. E não queriam que se repetissem. Era por isso que, toda vez que o avô acordava com a camisa da seleção, eles sacrificavam seu dia em prol do resto de sanidade que havia no avô. Esses dias eram, via de regra, dias tristes.
A cisma do avô estava em 1986. Para quem não sabe, este ano era ano de Copa do Mundo. E o avô não só era um ufanista incorrígivel como também um aficionado pelo futebol do meia Zico. Zico quase não jogara aquele campeonato pois estava machucado. Ainda assim, nas quartas-de-final, o meia entrou em campo e prontificou-se a bater um pênalti. O avô, extasiado, repetia mantricamente que o Zico nunca errava um pênalti. Pois o Zico errou. E daquele dia em diante, a cabeça do avô entrou em parafuso.
Nunca se recuperara. Os filhos buscaram ajuda, tentaram de tudo. No avô apenas o olhar parado, incrédulo, da hora do pênalti ficara petrificado.
E assim passaram os anos. Uns filhos desistiram, outros esqueceram do velho. Apenas sua filha mais dileta encarregou-se de seus cuidados. E, claro, dos dias em que acordava com a camisa da seleção.
Tentaram acordá-lo a todo custo. Era inútil. O avô estava imerso em mundo do qual não tinha controle.
A mãe, com a ajuda do filho, conseguiu uma fita com o jogo na íntegra. Era um ritual fácil, apesar de doloroso. O avô tomava o café solitário e ficava mudo até a tarde, quando, animadíssimo, cutucava o neto, instigando-o a ver o jogo. O neto ligava a TV - a fita já estava preparada - e acompanhava o avô na torcida até o momento do pênalti, do olhar petrificado e dos dias de mudez.
O filho - que também era o neto - às vezes revoltava-se contra seu destino atroz. Porém, as súplicas da mãe sempre o faziam resignar-se e aceitar o injusto carma. E assim era sua rotina até o dia em que o avô, mais uma vez, acordou com a camisa da seleção.
A correria já não era a mesma. Tinham treino e executavam as ações com a precisão de uma equipe de nado sincronizado. Almoçaram tristemente acompanhados da mudez do avô. O neto - que também era o filho - fingiu a mesma cara de surpresa quando o avô o avisou do jogo. A mãe e o filho/neto já nem assistiam direito à partida. Haviam decorado cada drible, cada passe errado, cada carrinho e chute desperdiçado. Apenas esperavam a hora do pênalti maldito.
E assim foi. Enfastiados e falsamente entusiasmados, a mãe e o filho viram Zico, pela enésima vez, preparar a cobrança. O meio campo deu sua tradicional meia corrida e com o pé direito fustigou fortemente a pelota que estufou os cordões da rede e descansou serena no fundo do gol.
O terror instalou-se. A mãe e o filho entreolharam-se, numa mudez gritante. O avô repetia em regozijo que o Zico nunca errava. A mãe e o filho voltaram-se para a TV, incrédulos. O replay não desmentia a alegria do avô. Os olhos da mãe e do filho ficaram parados, petrificados.
E desde então, toda vez que acordam com a camisa da seleção o avô precisa cumprir um dificultoso ritual em prol do que resta de sanidade na filha e no neto.
O avô não estava bem da cabeça. Passava dias, até meses sem dizer palavra. Quando resolvia abrir a boca era em uma ocasião temida pela sua filha e seu neto. Era quando acordava com a camisa da seleção.
A mãe e o filho já sabiam as consequências do não-cumprimento do sagrado ritual de adaptação. E não queriam que se repetissem. Era por isso que, toda vez que o avô acordava com a camisa da seleção, eles sacrificavam seu dia em prol do resto de sanidade que havia no avô. Esses dias eram, via de regra, dias tristes.
A cisma do avô estava em 1986. Para quem não sabe, este ano era ano de Copa do Mundo. E o avô não só era um ufanista incorrígivel como também um aficionado pelo futebol do meia Zico. Zico quase não jogara aquele campeonato pois estava machucado. Ainda assim, nas quartas-de-final, o meia entrou em campo e prontificou-se a bater um pênalti. O avô, extasiado, repetia mantricamente que o Zico nunca errava um pênalti. Pois o Zico errou. E daquele dia em diante, a cabeça do avô entrou em parafuso.
Nunca se recuperara. Os filhos buscaram ajuda, tentaram de tudo. No avô apenas o olhar parado, incrédulo, da hora do pênalti ficara petrificado.
E assim passaram os anos. Uns filhos desistiram, outros esqueceram do velho. Apenas sua filha mais dileta encarregou-se de seus cuidados. E, claro, dos dias em que acordava com a camisa da seleção.
Tentaram acordá-lo a todo custo. Era inútil. O avô estava imerso em mundo do qual não tinha controle.
A mãe, com a ajuda do filho, conseguiu uma fita com o jogo na íntegra. Era um ritual fácil, apesar de doloroso. O avô tomava o café solitário e ficava mudo até a tarde, quando, animadíssimo, cutucava o neto, instigando-o a ver o jogo. O neto ligava a TV - a fita já estava preparada - e acompanhava o avô na torcida até o momento do pênalti, do olhar petrificado e dos dias de mudez.
O filho - que também era o neto - às vezes revoltava-se contra seu destino atroz. Porém, as súplicas da mãe sempre o faziam resignar-se e aceitar o injusto carma. E assim era sua rotina até o dia em que o avô, mais uma vez, acordou com a camisa da seleção.
A correria já não era a mesma. Tinham treino e executavam as ações com a precisão de uma equipe de nado sincronizado. Almoçaram tristemente acompanhados da mudez do avô. O neto - que também era o filho - fingiu a mesma cara de surpresa quando o avô o avisou do jogo. A mãe e o filho/neto já nem assistiam direito à partida. Haviam decorado cada drible, cada passe errado, cada carrinho e chute desperdiçado. Apenas esperavam a hora do pênalti maldito.
E assim foi. Enfastiados e falsamente entusiasmados, a mãe e o filho viram Zico, pela enésima vez, preparar a cobrança. O meio campo deu sua tradicional meia corrida e com o pé direito fustigou fortemente a pelota que estufou os cordões da rede e descansou serena no fundo do gol.
O terror instalou-se. A mãe e o filho entreolharam-se, numa mudez gritante. O avô repetia em regozijo que o Zico nunca errava. A mãe e o filho voltaram-se para a TV, incrédulos. O replay não desmentia a alegria do avô. Os olhos da mãe e do filho ficaram parados, petrificados.
E desde então, toda vez que acordam com a camisa da seleção o avô precisa cumprir um dificultoso ritual em prol do que resta de sanidade na filha e no neto.
9 comentários:
Não vou dizer que eu gostei porque isso soaria como puxa-saquismo e/ou bixice.
E eu não sou bixa!
Alokaaaaa!!!
Sem hora da humildade, viu? Eu não gostei mesmo desse texto... =pppp
Cara, isso se parece com aquela HQ, Um bigo sem Fundo, com toda aquela problemática familiar e aquele ritmo intenso em que ocorre a trama.
Curti pra caramba, parabéns!!
Sensacional cara, ainda não tinha lido. O melhor texto que já li por aqui. Parabéns.
Valeu, pessoal, pelos comentários. É assim que vejo o que dá certo (ou não).
Esse texto estava na minha cabeça há tempos, saiu esses dias, no ônibus. Parto difícil. Mas desde o início já me afeiçoei à criança. Já é um dos meus preferidos.
cara...não sei o que dizer...só adorei...parabéns pelo texto...muito claro...final fantástico...muito bom, mas muito bom mesmo...
Cara! Jurei que tava lendo um texto do David Coimbra! E eu adoro os textos do cara! Ficou excelente mesmo véio! Profissional! Parabéns!
Valeu, mesmo, gurizada. Obrigado pela força.
Carlos
Eu não sou fã do Coimbra, mas vou encarar como elogio, tb. :P
Ótimo texto, Olmedo! Uma boa idéia e bem conduzida, do início ao fim! Curti :D
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