sexta-feira, 9 de abril de 2010

antes tarde do que ontem à tarde

Sávio sempre foi um cara legal. Era do tipo que todos queriam como amigo. Sávio tinha tantos amigos que mal podia se dar conta de quantos tinha. Mas dentre todos, ele só se importava com Carmela. Sávio conheceu Carmela há tanto tempo que nem ele podia precisar. Ela era diferente, gostava de coisas estranhas e tinha um sorriso capaz de parar o mundo. O mais estranho, porém, era aquela indiferença estranha que ela quase sempre despendia.
Não é necessário dizer que Sávio, havia muito, tinha uma queda por Carmela. Uma queda livre do alto do mais alto dos edifícios, diga-se de passagem. O problema, para Sávio, era que ele nunca sabia se Carmela também estaria disposta a jogar-se com ele do alto do tal edifício. Era um jogo silencioso. Sávio fazia às vezes do grande amigo que sempre fora e Carmela esquivava-se de qualquer decisão. Sim, Carmela era uma indecisa nata.
Quando Carmela interessava-se por um tipo qualquer, Sávio passava dias amuado, mas de forma sutil, tanto que Carmela sequer percebia. Carmela tentava dividir confidências, mas Sávio dizia que era preciso não saber de tudo, pois se soubessem tudo um do outro, o segredo estaria revelado. É claro que esse segredo era um ambiguidade óbvia, mas para Carmela era só uma metáfora metafísica.
Sávio também teve seus casos, nenhum duradouro, na verdade. Esperava pelo dia em que tomaria coragem e embarcaria para felicidade. Ou perderia uma amizade que lhe era muito cara, já que não suportaria um "não" e teria que, inevitavelmente, afastar-se de Carmela. Às vezes, os dois saiam juntos e bebiam até não poderem mais parar de rir. E quando isso acontecia, ficavam um grande tempo parados, olhando um pro outro, tentando decifrar-se mutuamente sem serem devorados.
Mas Sávio nem na embriaguez tomara coragem. Havia o risco já mencionado e Sávio não era do tipo que apostava todas as fichas em uma rodada de poker. Preferia a cumplicidade do abraço amigo do que arriscar a possibilidade temerária do beijo amante. Mas isso até ontem à tarde.
Carmela ia viajar. Intercâmbio. Quatro meses fora. Sávio fora encorajado pela sua legião de amigos. Era o dia. Se recebesse o não, teria tempo. Se fosse o sim, um único beijo, que poderia ser relembrado na volta. Não precisava apostar todas as fichas. A oportunidade chegara.
Na rodoviária, depois de ajudar Carmela com a bagagem, ficaram olhando-se fixamente, parados, absortos num mundo em que só havia os dois. Não era preciso dizer nenhuma palavra. Nos olhos azuis de Carmela a resposta estava formada. O celular de Sávio começou a tocar insistentemente. Atendeu, tinha tempo, ainda faltava alguns minutos. Desligaria na cara do chato que ousou interromper o mundo que se formava entre ele e Carmela. Era seu pai, chorando. O pai de Sávio nunca chora. Era a mãe de Sávio. Sim, ela se fora.
Sávio ficou parado, mudo. De seus olhos brotaram lágrimas que Carmela, ingenuamente, achou que fossem pra ela. O clima estava pesado. Carmela beijou-lhe o rosto e disse, ao ouvido, algo que Sávio não lembra. Ela se foi. Chorando, também. Sávio ficou ali perdido, sem saber com agir. Da janela do ônibus, Carmela lhe enviou um aceno e um beijo. Sávio debulhou-se em lágrimas. Havia perdido duas mulheres em uma só tarde.