Tudo o que o amanhã me trouxe foi um sonho desperdiçado, daqueles em que se acorda no momento em que se tem certeza que seria grande coisa, porém, no entanto, não se tem lembrança exata do que se perdeu. Tudo o que o amanhã me trouxe foi o salivar desesperado a que se é submetido no momento em que se descobre que o sorvete de morango, não se sabe por que motivo, acabou. Tudo o que o amanhã me trouxe foi a surpresa desagradável que se tem quando se descobre que o livro que se tanto queria, cujos níqueis suados que o pagariam estão no seu bolso surrado, está esgotado. Tudo que o amanhã me trouxe foi a recusa impensável daquele amor que se desprezava e que, de um momento pra outro, passou a ser indispensável, mas que, sabe-se lá por que, não mais o quis. Tudo que o amanhã me trouxe foi a queda de energia no exato momento em que se terminava um texto e que ingenuamente não havia sido salvo anteriormente e, justamente por isso, ficou pra sempre perdido. Tudo o que o amanhã me trouxe são lembranças pérfidas que teimo em trazer à tona pra não esquecer dos erros que ainda vou cometer.
sábado, 31 de outubro de 2009
domingo, 4 de outubro de 2009
havia dias em que acordava com a camisa da seleção
Havia dias em que acordava com a camisa da seleção. Era a senha. A mãe e o filho precisavam correr para arrumar tudo, enquanto o avô tomava seu solitário café da manhã. Era preciso arrumar a sala, tirar os porta-retratos recentes, resgatar do sótão o velho vídeo-cassete (que ficava aparentemente desligado) e retirar da redoma meticulosamente escondida a famigerada fita VHS.
O avô não estava bem da cabeça. Passava dias, até meses sem dizer palavra. Quando resolvia abrir a boca era em uma ocasião temida pela sua filha e seu neto. Era quando acordava com a camisa da seleção.
A mãe e o filho já sabiam as consequências do não-cumprimento do sagrado ritual de adaptação. E não queriam que se repetissem. Era por isso que, toda vez que o avô acordava com a camisa da seleção, eles sacrificavam seu dia em prol do resto de sanidade que havia no avô. Esses dias eram, via de regra, dias tristes.
A cisma do avô estava em 1986. Para quem não sabe, este ano era ano de Copa do Mundo. E o avô não só era um ufanista incorrígivel como também um aficionado pelo futebol do meia Zico. Zico quase não jogara aquele campeonato pois estava machucado. Ainda assim, nas quartas-de-final, o meia entrou em campo e prontificou-se a bater um pênalti. O avô, extasiado, repetia mantricamente que o Zico nunca errava um pênalti. Pois o Zico errou. E daquele dia em diante, a cabeça do avô entrou em parafuso.
Nunca se recuperara. Os filhos buscaram ajuda, tentaram de tudo. No avô apenas o olhar parado, incrédulo, da hora do pênalti ficara petrificado.
E assim passaram os anos. Uns filhos desistiram, outros esqueceram do velho. Apenas sua filha mais dileta encarregou-se de seus cuidados. E, claro, dos dias em que acordava com a camisa da seleção.
Tentaram acordá-lo a todo custo. Era inútil. O avô estava imerso em mundo do qual não tinha controle.
A mãe, com a ajuda do filho, conseguiu uma fita com o jogo na íntegra. Era um ritual fácil, apesar de doloroso. O avô tomava o café solitário e ficava mudo até a tarde, quando, animadíssimo, cutucava o neto, instigando-o a ver o jogo. O neto ligava a TV - a fita já estava preparada - e acompanhava o avô na torcida até o momento do pênalti, do olhar petrificado e dos dias de mudez.
O filho - que também era o neto - às vezes revoltava-se contra seu destino atroz. Porém, as súplicas da mãe sempre o faziam resignar-se e aceitar o injusto carma. E assim era sua rotina até o dia em que o avô, mais uma vez, acordou com a camisa da seleção.
A correria já não era a mesma. Tinham treino e executavam as ações com a precisão de uma equipe de nado sincronizado. Almoçaram tristemente acompanhados da mudez do avô. O neto - que também era o filho - fingiu a mesma cara de surpresa quando o avô o avisou do jogo. A mãe e o filho/neto já nem assistiam direito à partida. Haviam decorado cada drible, cada passe errado, cada carrinho e chute desperdiçado. Apenas esperavam a hora do pênalti maldito.
E assim foi. Enfastiados e falsamente entusiasmados, a mãe e o filho viram Zico, pela enésima vez, preparar a cobrança. O meio campo deu sua tradicional meia corrida e com o pé direito fustigou fortemente a pelota que estufou os cordões da rede e descansou serena no fundo do gol.
O terror instalou-se. A mãe e o filho entreolharam-se, numa mudez gritante. O avô repetia em regozijo que o Zico nunca errava. A mãe e o filho voltaram-se para a TV, incrédulos. O replay não desmentia a alegria do avô. Os olhos da mãe e do filho ficaram parados, petrificados.
E desde então, toda vez que acordam com a camisa da seleção o avô precisa cumprir um dificultoso ritual em prol do que resta de sanidade na filha e no neto.
O avô não estava bem da cabeça. Passava dias, até meses sem dizer palavra. Quando resolvia abrir a boca era em uma ocasião temida pela sua filha e seu neto. Era quando acordava com a camisa da seleção.
A mãe e o filho já sabiam as consequências do não-cumprimento do sagrado ritual de adaptação. E não queriam que se repetissem. Era por isso que, toda vez que o avô acordava com a camisa da seleção, eles sacrificavam seu dia em prol do resto de sanidade que havia no avô. Esses dias eram, via de regra, dias tristes.
A cisma do avô estava em 1986. Para quem não sabe, este ano era ano de Copa do Mundo. E o avô não só era um ufanista incorrígivel como também um aficionado pelo futebol do meia Zico. Zico quase não jogara aquele campeonato pois estava machucado. Ainda assim, nas quartas-de-final, o meia entrou em campo e prontificou-se a bater um pênalti. O avô, extasiado, repetia mantricamente que o Zico nunca errava um pênalti. Pois o Zico errou. E daquele dia em diante, a cabeça do avô entrou em parafuso.
Nunca se recuperara. Os filhos buscaram ajuda, tentaram de tudo. No avô apenas o olhar parado, incrédulo, da hora do pênalti ficara petrificado.
E assim passaram os anos. Uns filhos desistiram, outros esqueceram do velho. Apenas sua filha mais dileta encarregou-se de seus cuidados. E, claro, dos dias em que acordava com a camisa da seleção.
Tentaram acordá-lo a todo custo. Era inútil. O avô estava imerso em mundo do qual não tinha controle.
A mãe, com a ajuda do filho, conseguiu uma fita com o jogo na íntegra. Era um ritual fácil, apesar de doloroso. O avô tomava o café solitário e ficava mudo até a tarde, quando, animadíssimo, cutucava o neto, instigando-o a ver o jogo. O neto ligava a TV - a fita já estava preparada - e acompanhava o avô na torcida até o momento do pênalti, do olhar petrificado e dos dias de mudez.
O filho - que também era o neto - às vezes revoltava-se contra seu destino atroz. Porém, as súplicas da mãe sempre o faziam resignar-se e aceitar o injusto carma. E assim era sua rotina até o dia em que o avô, mais uma vez, acordou com a camisa da seleção.
A correria já não era a mesma. Tinham treino e executavam as ações com a precisão de uma equipe de nado sincronizado. Almoçaram tristemente acompanhados da mudez do avô. O neto - que também era o filho - fingiu a mesma cara de surpresa quando o avô o avisou do jogo. A mãe e o filho/neto já nem assistiam direito à partida. Haviam decorado cada drible, cada passe errado, cada carrinho e chute desperdiçado. Apenas esperavam a hora do pênalti maldito.
E assim foi. Enfastiados e falsamente entusiasmados, a mãe e o filho viram Zico, pela enésima vez, preparar a cobrança. O meio campo deu sua tradicional meia corrida e com o pé direito fustigou fortemente a pelota que estufou os cordões da rede e descansou serena no fundo do gol.
O terror instalou-se. A mãe e o filho entreolharam-se, numa mudez gritante. O avô repetia em regozijo que o Zico nunca errava. A mãe e o filho voltaram-se para a TV, incrédulos. O replay não desmentia a alegria do avô. Os olhos da mãe e do filho ficaram parados, petrificados.
E desde então, toda vez que acordam com a camisa da seleção o avô precisa cumprir um dificultoso ritual em prol do que resta de sanidade na filha e no neto.
Assinar:
Postagens (Atom)